Quantos crimes são cometidos em nome da liberdade de expressão, reflito comigo mesmo.
Ainda agora: um jornal semanal satírico francês, Charlie Hebdo, decide publicar caricaturas de Maomé, o profeta dos muçulmanos.
Não é coragem. É irresponsabilidade em seu grau mais extremo. Os
ânimos estão absurdamente exacerbados depois do infame filme “A
Inocência dos Muçulmanos”, do igualmente infame fanático cristão Nakoula
Bassiley Nakoula.
Os protestos no mundo muçulmano – previsíveis, aliás – custaram, até
aqui, 30 vidas. Um embaixador americano teve uma morte tenebrosa em
Bangasi, na Líbia, no curso das manifestações.
Por que, então, publicar caricaturas de Maomé? Para que haja mais mortes, mais desassossego, mais terror? Em nome da liberdade de expressão?
Francamente.
Liberdade de expressão é um conceito sagrado demais para ser tão mal
usado. No caso do jornal francês estamos falando, na verdade, é de
incitamento à violência, ao ódio – e de oportunismo cínico para vender
mais exemplares e ganhar notoriedade.
Vamos observar coisas miúdas comparadas a desenhos que ridicularizam
Maomé. Há alguns meses, os ingleses se comoveram com a parada cardíaca
de um jogador negro em pleno jogo, sob as vistas de um estádio lotado e
de dezenas de milhares de telespectadores.
No twitter de Londres, a história logo virou destaque. Manifestações
de solidariedade, de tristeza, de dor se multiplicaram. No meio do
pesar, do choque coletivo, alguém começou a fazer piadas racistas com o
jogador.
No próprio twitter, começou uma reação às ofensas absurdas. Acompanhei de perto. A certa altura, o humorista disse o seguinte: “Vivo num país em que existe liberdade de expressão.”
Bem, isso não impediu que ele fosse descoberto, indiciado,
publicamente desmoralizado e colocado por alguns dias na cadeia. Ele se
apoiara numa causa nobre, a liberdade de expressão, para cometer uma
mesquinharia criminosa.
Vamos a comparações mais dramáticas.
Imagine que, no fragor da tragédia do 11 de Setembro nos Estados
Unidos, alguém publicasse entre os americanos um vídeo louvando bin
Laden. Liberdade de expressão permite tudo, não é mesmo?
Não.
Ainda hoje, na Alemanha, a liberdade de expressão não chega sequer ao
ponto de ser permitida a venda do livro Minha Luta, de Hitler.
Ninguém captou a diferença entre liberdade de expressão e incitamento ao ódio tão bem quanto o escritor alemão Gunter Grass.
Grass, um libertário, se colocou imediatamente ao lado de Salman
Rushdie quando, em 1989, este publicou Versos Satânicos, um romance que
revoltou os muçulmanos.
Quase vinte anos depois, Grass mudou de atitude quando um jornal
dinamarquês publicou caricaturas de Maomé, com as consequências que você
pode imaginar.
Quando perguntaram a Grass por que ele mudara, ele disse, com a
sabedoria de um Sócrates: “Agora, são fundamentalistas contra
fundamentalistas.”
Clap, clap, clap.
Rushdie escrevera um livro sem saber os efeitos que viriam disso. A
partir dali, ninguém mais poderia alegar surpresa. Essa a lógica
perfeita de Grass.
Sabemos bem o que está por trás da raiva árabe. São décadas de humilhações e predação dos civilizadores
ocidentais, são as bombas despejadas por drones, os aviões de guerra
sem tripulação, são as crianças e mulheres mortas numa indefensável
Guerra ao Terror que responde ao terror com mais terror ainda.
Basta ver os poucos minutos do célebre filme vazado pelo Wikileaks
para entender tudo. Bagdá em ruínas, e soldados americanos em
helicópteros Apache matando inocentes como se fosse um jogo de
videogame.
Em circunstâncias assim, filmes e caricaturas que insultam os
muçulmanos vão gerar reações extremadas. Isso não é liberdade de
expressão.
É irresponsabilidade criminosa.
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