Livro de uruguaio é mordaz ao tratar de política, sexo, ciência e religião
ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
"Quinze de setembro. Adote um
banqueirinho! No ano de 2008 a Bolsa de Nova York foi a pique. Os magos
de Wall Street, especialistas em vender castelos no ar, roubaram milhões
de casas e de empregos. Imploraram uma ajudinha pelo amor de Deus e
receberam a maior recompensa jamais concedida na história humana. Essa
dinheirama teria bastado para alimentar todos os famintos do mundo, com
sobremesa e tudo, daqui até a eternidade. Ninguém pensou nisso."
Esse é o resumo do agudo verbete
que o uruguaio Eduardo Galeano preparou para o dia de hoje em "Os
Filhos dos Dias". O livro mistura história, política, humor, economia,
religião, sexo, ciência e futebol. É um surpreendente calendário
heterodoxo.
Autor do famoso "As Veias
Abertas da América Latina" (1971), o premiado Galeano, 72, é conhecido
pela visão crítica e aguda de seus ensaios.
Como em suas outras obras, nesta
mais recente a política é o ponto forte. Mas não só. Lá estão coletados
casos de denúncias de discriminação contra mulheres e homossexuais,
ataques ao ambiente e descalabros contra pobres e indefesos.
Tudo é editado em 366 pílulas -uma para cada dia de um ano bissexto- em textos curtos ou curtíssimos.
Às vezes as notas têm estilo de
almanaque; em outras parecem relatos jornalísticos. De vez em quando
saltam poesias e manifestos. É dinâmico e gostoso de ler.
Pelas páginas passeiam Einstein,
Picasso, Caruso, Tarzan, Noel Rosa, Tupac Amaru, Rockefeller, Sherlock
Holmes, Drácula, Fernando Pessoa, Mark Twain. E informações variadas.
Galeano conta que a soma dos
sem-casa chega a um bilhão em pleno século 21. Que até 16 de maio de
1990 a homossexualidade fazia parte da lista de doenças mentais da
Organização Mundial da Saúde. Que só em 2008 os EUA tiraram Mandela da
lista dos "terroristas perigosos".
O verbete de 13 de fevereiro
narra que em 2008 o menino Miguel López Rocha, 8, brincava nos arredores
de Guadalajara, no México, quando caiu no rio Santiago.
"Não morreu afogado. Morreu
envenenado. O rio contém arsênico, ácido sulfúrico, mercúrio, cromo,
chumbo e furano, jogados em suas águas pela Aventis, Bayer, Nestlé, IBM,
Dupont, Xerox, United Plastics, Celanese e outras empresas, que em seus
países estão proibidas de fazer esse tipo de doação", escreve Galeano.
BRASIL
Há historinhas brasileiras, como
a da inusitada manifestação que ocorreu em Sorocaba (SP) em 8 de
fevereiro de 1980. Era tempo de ditadura, e uma ordem judicial proibia
beijos que "atentavam contra a moral pública" -como os "no pescoço" e os
em que "as mucosas labiais se unem numa insofismável expansão de
sensualidade". Em protesto, a cidade se transformou em um enorme
beijódromo.
Muitos verbetes tratam das
tragédias das guerras. Lembram da destruição das bibliotecas de
Alexandria (em 47 aC, por Júlio César) e de Bagdá, quando os EUA
invadiram o Iraque. E o autor recorda a incrível "biblioteca andante" de
um grão-vizir da Pérsia no final do século 10. Para escapar de guerras e
incêndios, Abdul Ismael fez quatrocentos camelos carregarem seus 117
mil livros.
No dia internacional do direito à
informação (28 de setembro), Galeano relata que logo após o lançamento
das bombas atômicas no Japão, em 1945, o "New York Times" publicou
artigo de William Laurence, um redator especializado em ciência,
afirmando que não havia radiação em Hiroshima e Nagasaki; que a
radioatividade era uma "mentira da propaganda japonesa".
Laurence ganhou o Pulitzer. Mais tarde se descobriu que ele estava na folha de pagamento do orçamento militar dos EUA.
OS FILHOS DOS DIAS
AUTOR Eduardo Galeano
EDITORA L&PM
TRADUÇÃO Eric Nepomuceno
FONTE: Folha de São Paulo, 15 de setembro de 2012.
Eduardo Galeano lança novo livro na forma de um calendário
A cada dia, nasce uma história
em “Os filhos dos dias”; trata-se de 366 textos que, segundo Galeano,
são histórias de invisíveis que merecem ser contadas
de Ana María Mizrah
"LA REPÚBLICA", de Montevidéu (Uruguai)
Por que este título: Os filhos dos dias?
Segundo os maias, nós somos
filhos dos dias, ou seja, o tempo é que estabelece o espaço. O tempo é
nosso pai e nossa mãe e, como somos filhos dos dias, o mais natural é
que a cada dia nasça uma história. Somos feitos de átomos, mas também de
histórias.
Dentro dessas
histórias há muitas vinculadas à nossa vida cotidiana. Você assinala:
“vivemos em um mundo inseguro”. A particularidade é que projeta que
existem diferentes concepções sobre a insegurança. A que se refere?
Muitos políticos no mundo
inteiro, não é algo que passa somente em nosso país, exploram um tipo de
histeria coletiva a respeito do tema da insegurança. Te ensinam a ver
ao próximo como uma ameaça e te proíbem vê-lo como uma promessa, ou
seja, o próximo, esse senhor, essa senhora que anda por aí, pode
roubar-te, sequestrar-te, enganar-te, mentir para você, raramente
oferecer-te algo que valha a pena receber. Creio que essa forma parte de
uma ditadura universal do medo. Fomos treinados para ter medo de tudo e
de todos e este é o álibi que necessita a estrutura militar do mundo.
Este é um mundo que destina metade de seus recursos à arte de matar o
próximo. Os gastos militares, que são o nome artístico dos gastos
criminais, necessitam de um álibi. As armas necessitam da guerra, como
os abrigos necessitam do inverno.Quando fala dos medos, você
joga com essa palavra para assim mencionar os meios e tem uma história
que é “os meios de comunicação”. A que lugar você atribui aos meios em
nossos medos?
Às vezes, os meios atuam como
medos de comunicação, então, se convertem em medos de incomunicação.
Isto não é verdade para todos, mas sim para alguns meios que no mundo
inteiro exploram esse tipo de histeria coletiva desatada com o tema da
insegurança. Mentem, porque a insegurança não se reduz à insegurança que
se pode sofrer nas ruas. Inseguro é este mundo e a primeira é a
insegurança no trabalho, que é a mais grave de todas e da qual nunca
falam os políticos que exploram o tema da insegurança. Não há nada mais
inseguro que o trabalho. Todos nos perguntamos: e amanhã, haverá quem me
contrate? Voltarei ao lugar de trabalho onde estive hoje? Terá alguém
ocupado meu lugar?
Esse medo real de perder o
trabalho ou de não encontrá-lo é a fonte de insegurança mais importante.
Tão inseguro é o mundo, a quantidade de pessoas que matam os carros
nisso que chamamos acidentes de trânsito, na realidade são atos
criminosos por conta dos condutores que tendo permissão de dirigir, tem
permissão para matar, ou a insegurança da maioria das crianças que
nascem no mundo condenados a morrer muito cedo de fome ou de enfermidade
incurável.
Aparecem as histórias dos
desaparecidos, mas lhe menciono uma em particular, chamada Plano Condor,
onde a história que se conta pertence a Macarena Gelma. Como foi para
você conhecer Macarena Gelman?
Comecei conhecendo ao pai de
Macarena (Marcelo) e ao avô Juan (Gelman) com quem trabalhei junto na
revista Crisis em Buenos Aires e que é meu amigo de toda a vida. São
muitos anos de amizade, ou melhor, de irmandade. Juan (Gelman) teve que
sair da Argentina para continuar vivo, naqueles dias que se viviam em
Buenos Aires, onde tinha que ir ou esconder-se. Então, eu recebia com
muita frequência a seu filho Marcelo e me fiz de pai por algum tempo,
depois o mataram, e a outra história é bastante conhecida.
A mulher de Marcelo (María
Claudia) foi sequestrada na Argentina. Eram acusados do crime de
protestar, delitos de dignidade que tem a ver com o direito estudantil
ao protesto. Esses eram os crimes dos meninos, como eles foram
assassinados muito cedo. A María Claudia assassinaram no Uruguai, onde
já funcionava o mercado comum da morte, que foi o melhor em
funcionamento, porque o Mercosul ainda tinha dificuldades graves. O
mercado da morte funcionou muito bem naquelas horas do terror onde as
ditaduras trocavam favores. Mandaram María Claudia grávida para o
Uruguai e aqui os militares uruguaios se encarregaram do trabalho.
Esperaram ela dar à luz, ela passou seus últimos dias, ou talvez seus
últimos meses, na sede do Bulevar Artigas e Palmar (SID) onde
descobriu-se a placa em memória de María Claudia e todos os que
estiveram ali.
Me impressionou o contraste pela
beleza exterior do palácio e os horrores que escondia. Depois de dar à
luz, a mataram e entregaram seu filho(a) a um policial, troca de
favores. A partir de uma busca complicada de Juan (Gelman) e seus
amigos, conseguiu encontrá-la e agora chama-se Macarena Gelman. Nós
tornamos muito amigos e uma vez jantando em casa, me contou essa
história que é parte das histórias de “Os filhos dos dias” (livro). É
uma história muito íntima, muito particular e lhe pedi autorização para
publicá-la. É uma história rara, mas reveladora. Conta que quando ainda
não sabia quem era e vivia em outra casa, com outro nome, nesse período
sofria de insônia contínua, que não a deixavam dormir a noite porque a
perseguia sempre o mesmo pesadelo. Via uns senhores desconhecidos muito
armados que a buscavam no dormitório onde estava dormindo, debaixo da
cama, no guarda-roupa e em todas as partes e ela acordava gritando e
angustiadíssima.
Durante muitíssimo tempo, toda
sua infância teve esse pesadelo que a perseguia e ela não sabia o por
quê, de onde vinha. Até que conheceu sua verdadeira história e soube que
estava sonhando os pesadelos que sua mãe havia vivido enquanto a
formava no ventre. A mãe, uma estudante de apenas 19 anos, era
perseguida de verdade por outros senhores armados até os dentes que a
encontraram e a mandaram para morrer no Uruguai. Macarena estava no
ventre dessa mulher acoada e perseguida. Desde o ventre padecia a
perseguição que sua mãe sofria e depois a sonhou e se converteu em seus
próprios pesadelos. Ela sonhou o que sua mãe havia vivido. É uma
história que parece uma metáfora da transmissão, das penas, dos
horrores, e também de outras continuidades que não são todas horríveis.
É um livro que contém muitas histórias de mulheres. Por que?
Também há muitas histórias de
mulheres em meus livros anteriores, como “Espelhos e Bocas do Tempo”. Há
muitas histórias dos invisíveis, e as mulheres ainda são bastante
invisíveis. Há histórias de negros, de índios, das culturas ignoradas,
das pessoas ignoradas e que merecem ser redescobertas porque têm algo
para dizer e vale a pena escutar.
Neste último livro (Os filhos
dos dias) há uma história que me impressionou muito, e que não havia
escrito até agora, a de Juana Azurduy. Juana foi uma heroína das guerras
de independência. Encabeçou a tomada do Cerro de Potosí que estava nas
mãos dos espanhóis. Ela era a chefe de um grupo guerrilheiro que
recuperou Potosí das mãos espanholas. Depois seguiu guerreando pela
independência, perdeu seus 7 filhos e seu marido nessa guerra.
Finalmente, foi enterrada em uma fossa comum e morreu na pobreza mais
pobre que se possa imaginar. Antes havia recebido um título militar,
foram as forças independentistas as que lhe deram um título que dizia em
mérito: “a sua viril coragem”. Precisou-se de muito tempo para que uma
presidenta argentina (Cristina Fernández) a outorgasse o título de
General por sua feminina valentia.
Um integrante da Real Academia
Espanhola assinalou como um erro utilizar expressões que carreguem a
linguagem. Era uma crítica à feminização como, por exemplo, quando se
utiliza todos e todas. O que você pensa a respeito?
O transcendente é o que está por
trás, mas às vezes os conteúdos são refletidos nas palavras que
expressam. Me parece ridículo quando uma mulher se apresenta e me diz
sou médico, será médica, eu contesto.
Há muitas histórias dos povos
originários, da luta pelos recursos naturais, e o rol das
multinacionais. Em particular, uma história dedicada à selva amazônica.
Essa história sobre a Amazônia
recorda que a Texaco, empresa petroleira que derramou veneno durante
muitos anos, arruinou boa parte da solva equatoriana. Foi a juízo, mas
perdeu. As vítimas desse atentado à natureza e às pessoas desse lugar
não tinham meios econômicos, enquanto a Texaco contava com centenas de
advogados. Ao cabo de anos, contudo, o pleito foi ganho, mas ainda não
se colocou em prática, porque há muitas maneiras de se apelar, e de
tirar a bola para fora e para isso não faltam doutores.
No livro tem um olhar crítico sobre os governos progressistas que ainda não descriminalizaram o aborto.
O livro toca todos os temas sempre a partir de histórias concretas. Não é um livro teórico.
As 366 histórias não são somente latino-americanas, você percorre o mundo.
Há muitas histórias que merecem
ser recuperadas. Luana, por exemplo, foi a primeira mulher que firmou
seus escritos nas tábuas de barro. Ocorreu há quatro mil anos e dizia
que escrever era uma festa. Essa mulher é desconhecida. E vale a pena
contar que essa história existiu.
A respeito da crise internacional , você resgata o que ocorreu na Islândia e o movimento dos indignados na Espanha.
Esta crise provém de um círculo
muito pequeno de banqueiros onipotentes. Me ocorreu para esta história
um título sinistro que foi “adote um banqueiro”. Os responsáveis da
crise são os que mais tem se queixado e os que mais dinheiro tem
recebido. Eles têm sido recompensados por fundir o planeta. Todo esse
dinheiro que destinou aos que causaram o pior desastre na história da
humanidade seria suficiente para dar comida aos famintos do mundo com
sobra, inclusive.
Você acha uma contradição a
existência do movimento dos indignados e que, ao mesmo tempo, tenha
ganhado o Partido Popular na Espanha?
A aparição dos indignados é o
que de mais lindo ocorreu no mundo nos últimos tempos. Creio que o
melhor da vida é sua capacidade de surpresa. O melhor dos meus dias é o
que ainda não vivi. Cada vez que uma cigana me cerca para ler a minha
mão a peço por favor que a pague mais que não leia. Não quero que me
digam o que vai me ocorrer, o melhor que a vida tem é a curiosidade e a
curiosidade nasce da ignorância do destino. A explosão dos indignados
começou na Espanha, e depois se estendeu em outras partes. É uma boa
notícia a capacidade de indignação. Bem dizia meu mestre brasileiro
Darcy Ribeiro (intelectual brasileiro já falecido) que o mundo se divide
entre os indignos e os indignados e que tem-se que tomar partido, há
que se eleger.
Pensei muito nele quando surgiu
este movimento. Jovens que perderam seus empregos e suas casas por
responsabilidade desses malabarismos financeiros que acabaram despojando
os inocentes de seus bens. Eles não foram os que pegaram empréstimos
impossíveis, não foram eles os culpados da bolha financeira e deste
disparate que aconteceu na Espanha de construir e construir e agora está
cheia de moradias desabitadas e gente sem casa.
O PP ganhou a eleição, é
verdade. A direita ganhou as eleições, e terá que lutar para que isso
mude. Isto que aconteceu na Espanha também fala do desprestígio de
forças de esquerda que entram na vida política prometendo mudanças
radicais, e depois terminam repetindo a história, ao invés de mudá-la.
Muitas pessoas, sobretudo os jovens, se sentem desapontadas e abandonam a
política.
FONTE: Brasil de Fato
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