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domingo, 16 de setembro de 2012

Galeano constrói calendário crítico sobre fatos históricos



Livro de uruguaio é mordaz ao tratar de política, sexo, ciência e religião

ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
"Quinze de setembro. Adote um banqueirinho! No ano de 2008 a Bolsa de Nova York foi a pique. Os magos de Wall Street, especialistas em vender castelos no ar, roubaram milhões de casas e de empregos. Imploraram uma ajudinha pelo amor de Deus e receberam a maior recompensa jamais concedida na história humana. Essa dinheirama teria bastado para alimentar todos os famintos do mundo, com sobremesa e tudo, daqui até a eternidade. Ninguém pensou nisso."
Esse é o resumo do agudo verbete que o uruguaio Eduardo Galeano preparou para o dia de hoje em "Os Filhos dos Dias". O livro mistura história, política, humor, economia, religião, sexo, ciência e futebol. É um surpreendente calendário heterodoxo.
Autor do famoso "As Veias Abertas da América Latina" (1971), o premiado Galeano, 72, é conhecido pela visão crítica e aguda de seus ensaios.
Como em suas outras obras, nesta mais recente a política é o ponto forte. Mas não só. Lá estão coletados casos de denúncias de discriminação contra mulheres e homossexuais, ataques ao ambiente e descalabros contra pobres e indefesos.
Tudo é editado em 366 pílulas -uma para cada dia de um ano bissexto- em textos curtos ou curtíssimos.
Às vezes as notas têm estilo de almanaque; em outras parecem relatos jornalísticos. De vez em quando saltam poesias e manifestos. É dinâmico e gostoso de ler.
Pelas páginas passeiam Einstein, Picasso, Caruso, Tarzan, Noel Rosa, Tupac Amaru, Rockefeller, Sherlock Holmes, Drácula, Fernando Pessoa, Mark Twain. E informações variadas.
Galeano conta que a soma dos sem-casa chega a um bilhão em pleno século 21. Que até 16 de maio de 1990 a homossexualidade fazia parte da lista de doenças mentais da Organização Mundial da Saúde. Que só em 2008 os EUA tiraram Mandela da lista dos "terroristas perigosos".
O verbete de 13 de fevereiro narra que em 2008 o menino Miguel López Rocha, 8, brincava nos arredores de Guadalajara, no México, quando caiu no rio Santiago.
"Não morreu afogado. Morreu envenenado. O rio contém arsênico, ácido sulfúrico, mercúrio, cromo, chumbo e furano, jogados em suas águas pela Aventis, Bayer, Nestlé, IBM, Dupont, Xerox, United Plastics, Celanese e outras empresas, que em seus países estão proibidas de fazer esse tipo de doação", escreve Galeano.
BRASIL
Há historinhas brasileiras, como a da inusitada manifestação que ocorreu em Sorocaba (SP) em 8 de fevereiro de 1980. Era tempo de ditadura, e uma ordem judicial proibia beijos que "atentavam contra a moral pública" -como os "no pescoço" e os em que "as mucosas labiais se unem numa insofismável expansão de sensualidade". Em protesto, a cidade se transformou em um enorme beijódromo.
Muitos verbetes tratam das tragédias das guerras. Lembram da destruição das bibliotecas de Alexandria (em 47 aC, por Júlio César) e de Bagdá, quando os EUA invadiram o Iraque. E o autor recorda a incrível "biblioteca andante" de um grão-vizir da Pérsia no final do século 10. Para escapar de guerras e incêndios, Abdul Ismael fez quatrocentos camelos carregarem seus 117 mil livros.
No dia internacional do direito à informação (28 de setembro), Galeano relata que logo após o lançamento das bombas atômicas no Japão, em 1945, o "New York Times" publicou artigo de William Laurence, um redator especializado em ciência, afirmando que não havia radiação em Hiroshima e Nagasaki; que a radioatividade era uma "mentira da propaganda japonesa".
Laurence ganhou o Pulitzer. Mais tarde se descobriu que ele estava na folha de pagamento do orçamento militar dos EUA.

OS FILHOS DOS DIAS

AUTOR Eduardo Galeano
EDITORA L&PM
TRADUÇÃO Eric Nepomuceno


FONTE: Folha de São Paulo, 15 de setembro de 2012.


Eduardo Galeano lança novo livro na forma de um calendário

A cada dia, nasce uma história em “Os filhos dos dias”; trata-se de 366 textos que, segundo Galeano, são histórias de invisíveis que merecem ser contadas
de Ana María Mizrah
"LA REPÚBLICA", de Montevidéu (Uruguai)
Por que este título: Os filhos dos dias?
Segundo os maias, nós somos filhos dos dias, ou seja, o tempo é que estabelece o espaço. O tempo é nosso pai e nossa mãe e, como somos filhos dos dias, o mais natural é que a cada dia nasça uma história. Somos feitos de átomos, mas também de histórias.
Dentro dessas histórias há muitas vinculadas à nossa vida cotidiana. Você assinala: “vivemos em um mundo inseguro”. A particularidade é que projeta que existem diferentes concepções sobre a insegurança. A que se refere?

Muitos políticos no mundo inteiro, não é algo que passa somente em nosso país, exploram um tipo de histeria coletiva a respeito do tema da insegurança. Te ensinam a ver ao próximo como uma ameaça e te proíbem vê-lo como uma promessa, ou seja, o próximo, esse senhor, essa senhora que anda por aí, pode roubar-te, sequestrar-te, enganar-te, mentir para você, raramente oferecer-te algo que valha a pena receber. Creio que essa forma parte de uma ditadura universal do medo. Fomos treinados para ter medo de tudo e de todos e este é o álibi que necessita a estrutura militar do mundo. Este é um mundo que destina metade de seus recursos à arte de matar o próximo. Os gastos militares, que são o nome artístico dos gastos criminais, necessitam de um álibi. As armas necessitam da guerra, como os abrigos necessitam do inverno.Quando fala dos medos, você joga com essa palavra para assim mencionar os meios e tem uma história que é “os meios de comunicação”. A que lugar você atribui aos meios em nossos medos?
Às vezes, os meios atuam como medos de comunicação, então, se convertem em medos de incomunicação. Isto não é verdade para todos, mas sim para alguns meios que no mundo inteiro exploram esse tipo de histeria coletiva desatada com o tema da insegurança. Mentem, porque a insegurança não se reduz à insegurança que se pode sofrer nas ruas. Inseguro é este mundo e a primeira é a insegurança no trabalho, que é a mais grave de todas e da qual nunca falam os políticos que exploram o tema da insegurança. Não há nada mais inseguro que o trabalho. Todos nos perguntamos: e amanhã, haverá quem me contrate? Voltarei ao lugar de trabalho onde estive hoje? Terá alguém ocupado meu lugar?
Esse medo real de perder o trabalho ou de não encontrá-lo é a fonte de insegurança mais importante. Tão inseguro é o mundo, a quantidade de pessoas que matam os carros nisso que chamamos acidentes de trânsito, na realidade são atos criminosos por conta dos condutores que tendo permissão de dirigir, tem permissão para matar, ou a insegurança da maioria das crianças que nascem no mundo condenados a morrer muito cedo de fome ou de enfermidade incurável.
Aparecem as histórias dos desaparecidos, mas lhe menciono uma em particular, chamada Plano Condor, onde a história que se conta pertence a Macarena Gelma. Como foi para você conhecer Macarena Gelman?
Comecei conhecendo ao pai de Macarena (Marcelo) e ao avô Juan (Gelman) com quem trabalhei junto na revista Crisis em Buenos Aires e que é meu amigo de toda a vida. São muitos anos de amizade, ou melhor, de irmandade. Juan (Gelman) teve que sair da Argentina para continuar vivo, naqueles dias que se viviam em Buenos Aires, onde tinha que ir ou esconder-se. Então, eu recebia com muita frequência a seu filho Marcelo e me fiz de pai por algum tempo, depois o mataram, e a outra história é bastante conhecida.
A mulher de Marcelo (María Claudia) foi sequestrada na Argentina. Eram acusados do crime de protestar, delitos de dignidade que tem a ver com o direito estudantil ao protesto. Esses eram os crimes dos meninos, como eles foram assassinados muito cedo. A María Claudia assassinaram no Uruguai, onde já funcionava o mercado comum da morte, que foi o melhor em funcionamento, porque o Mercosul ainda tinha dificuldades graves. O mercado da morte funcionou muito bem naquelas horas do terror onde as ditaduras trocavam favores. Mandaram María Claudia grávida para o Uruguai e aqui os militares uruguaios se encarregaram do trabalho. Esperaram ela dar à luz, ela passou seus últimos dias, ou talvez seus últimos meses, na sede do Bulevar Artigas e Palmar (SID) onde descobriu-se a placa em memória de María Claudia e todos os que estiveram ali.
Me impressionou o contraste pela beleza exterior do palácio e os horrores que escondia. Depois de dar à luz, a mataram e entregaram seu filho(a) a um policial, troca de favores. A partir de uma busca complicada de Juan (Gelman) e seus amigos, conseguiu encontrá-la e agora chama-se Macarena Gelman. Nós tornamos muito amigos e uma vez jantando em casa, me contou essa história que é parte das histórias de “Os filhos dos dias” (livro). É uma história muito íntima, muito particular e lhe pedi autorização para publicá-la. É uma história rara, mas reveladora. Conta que quando ainda não sabia quem era e vivia em outra casa, com outro nome, nesse período sofria de insônia contínua, que não a deixavam dormir a noite porque a perseguia sempre o mesmo pesadelo. Via uns senhores desconhecidos muito armados que a buscavam no dormitório onde estava dormindo, debaixo da cama, no guarda-roupa e em todas as partes e ela acordava gritando e angustiadíssima.
Durante muitíssimo tempo, toda sua infância teve esse pesadelo que a perseguia e ela não sabia o por quê, de onde vinha. Até que conheceu sua verdadeira história e soube que estava sonhando os pesadelos que sua mãe havia vivido enquanto a formava no ventre. A mãe, uma estudante de apenas 19 anos, era perseguida de verdade por outros senhores armados até os dentes que a encontraram e a mandaram para morrer no Uruguai. Macarena estava no ventre dessa mulher acoada e perseguida. Desde o ventre padecia a perseguição que sua mãe sofria e depois a sonhou e se converteu em seus próprios pesadelos. Ela sonhou o que sua mãe havia vivido. É uma história que parece uma metáfora da transmissão, das penas, dos horrores, e também de outras continuidades que não são todas horríveis.
É um livro que contém muitas histórias de mulheres. Por que?
Também há muitas histórias de mulheres em meus livros anteriores, como “Espelhos e Bocas do Tempo”. Há muitas histórias dos invisíveis, e as mulheres ainda são bastante invisíveis. Há histórias de negros, de índios, das culturas ignoradas, das pessoas ignoradas e que merecem ser redescobertas porque têm algo para dizer e vale a pena escutar.
Neste último livro (Os filhos dos dias) há uma história que me impressionou muito, e que não havia escrito até agora, a de Juana Azurduy. Juana foi uma heroína das guerras de independência. Encabeçou a tomada do Cerro de Potosí que estava nas mãos dos espanhóis. Ela era a chefe de um grupo guerrilheiro que recuperou Potosí das mãos espanholas. Depois seguiu guerreando pela independência, perdeu seus 7 filhos e seu marido nessa guerra. Finalmente, foi enterrada em uma fossa comum e morreu na pobreza mais pobre que se possa imaginar. Antes havia recebido um título militar, foram as forças independentistas as que lhe deram um título que dizia em mérito: “a sua viril coragem”. Precisou-se de muito tempo para que uma presidenta argentina (Cristina Fernández) a outorgasse o título de General por sua feminina valentia.
Um integrante da Real Academia Espanhola assinalou como um erro utilizar expressões que carreguem a linguagem. Era uma crítica à feminização como, por exemplo, quando se utiliza todos e todas. O que você pensa a respeito?
O transcendente é o que está por trás, mas às vezes os conteúdos são refletidos nas palavras que expressam. Me parece ridículo quando uma mulher se apresenta e me diz sou médico, será médica, eu contesto.
Há muitas histórias dos povos originários, da luta pelos recursos naturais, e o rol das multinacionais. Em particular, uma história dedicada à selva amazônica.
Essa história sobre a Amazônia recorda que a Texaco, empresa petroleira que derramou veneno durante muitos anos, arruinou boa parte da solva equatoriana. Foi a juízo, mas perdeu. As vítimas desse atentado à natureza e às pessoas desse lugar não tinham meios econômicos, enquanto a Texaco contava com centenas de advogados. Ao cabo de anos, contudo, o pleito foi ganho, mas ainda não se colocou em prática, porque há muitas maneiras de se apelar, e de tirar a bola para fora e para isso não faltam doutores.
No livro tem um olhar crítico sobre os governos progressistas que ainda não descriminalizaram o aborto.
O livro toca todos os temas sempre a partir de histórias concretas. Não é um livro teórico.
As 366 histórias não são somente latino-americanas, você percorre o mundo.
Há muitas histórias que merecem ser recuperadas. Luana, por exemplo, foi a primeira mulher que firmou seus escritos nas tábuas de barro. Ocorreu há quatro mil anos e dizia que escrever era uma festa. Essa mulher é desconhecida. E vale a pena contar que essa história existiu.
A respeito da crise internacional , você resgata o que ocorreu na Islândia e o movimento dos indignados na Espanha.
Esta crise provém de um círculo muito pequeno de banqueiros onipotentes. Me ocorreu para esta história um título sinistro que foi “adote um banqueiro”. Os responsáveis da crise são os que mais tem se queixado e os que mais dinheiro tem recebido. Eles têm sido recompensados por fundir o planeta. Todo esse dinheiro que destinou aos que causaram o pior desastre na história da humanidade seria suficiente para dar comida aos famintos do mundo com sobra, inclusive.
Você acha uma contradição a existência do movimento dos indignados e que, ao mesmo tempo, tenha ganhado o Partido Popular na Espanha?
A aparição dos indignados é o que de mais lindo ocorreu no mundo nos últimos tempos. Creio que o melhor da vida é sua capacidade de surpresa. O melhor dos meus dias é o que ainda não vivi. Cada vez que uma cigana me cerca para ler a minha mão a peço por favor que a pague mais que não leia. Não quero que me digam o que vai me ocorrer, o melhor que a vida tem é a curiosidade e a curiosidade nasce da ignorância do destino. A explosão dos indignados começou na Espanha, e depois se estendeu em outras partes. É uma boa notícia a capacidade de indignação. Bem dizia meu mestre brasileiro Darcy Ribeiro (intelectual brasileiro já falecido) que o mundo se divide entre os indignos e os indignados e que tem-se que tomar partido, há que se eleger.
Pensei muito nele quando surgiu este movimento. Jovens que perderam seus empregos e suas casas por responsabilidade desses malabarismos financeiros que acabaram despojando os inocentes de seus bens. Eles não foram os que pegaram empréstimos impossíveis, não foram eles os culpados da bolha financeira e deste disparate que aconteceu na Espanha de construir e construir e agora está cheia de moradias desabitadas e gente sem casa.
O PP ganhou a eleição, é verdade. A direita ganhou as eleições, e terá que lutar para que isso mude. Isto que aconteceu na Espanha também fala do desprestígio de forças de esquerda que entram na vida política prometendo mudanças radicais, e depois terminam repetindo a história, ao invés de mudá-la. Muitas pessoas, sobretudo os jovens, se sentem desapontadas e abandonam a política.

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