“Para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo…”
O texto abaixo trata-se de um registro de José Saramago, sobre as privatizações, em Cadernos de Lanzarote – Diário III, págs. 147 e 148.
Eis o texto:
“Regressados de uma viagem à Argentina e Bolívia, os meus cunhados
María e Javier trazem-me o jornal Clarín de 30 de Agosto. Aí vem a
notícia de que vai ser apresentada ao Parlamento peruano uma nova lei de
turismo que contempla a possibilidade de entregar a exploração de zonas
arqueológicas importantes, como Machu Picchu e a cidadela pré-incaica
de Chan-Chan, a empresas privadas, mediante concurso internacional.
Clarin chama a isto “la loca carrera privatista de Fujimori”. O autor
da proposta de lei é um tal Ricardo Marcenaro, presidente da Comissão
de Turismo e telecomunicações e Infra-Estrutura do Congresso peruano,
que alega o seguinte, sem precisar da tradução: “En vista de que el
Estado no ha administrado bien nuestras zonas arqueológicas – qué
pasaría si las otorgaramos a empresas especializadas en otros países con
gran efectividad?”
A mim parece-me bem. Privatize-se Machu Picchu, privatize-se Chan
Chan, privatize-se a Capela Sistina, privatize-se o Pártenon,
privatize-se o Nuno Gonçalves, privatize-se a Catedral de Chartres,
privatize-se o Descimento da Cruz, de Antonio da Crestalcore,
privatize-se o Pórtico da Glória de Santiago de Compostela, privatize-se
a Cordilheira dos Andes, privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu,
privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei,
privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for
diurno e de olhos abertos. E, finalmente, para florão e remate de tanto
privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a
exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional.
Aí se encontra a salvação do mundo… E, já agora, privatize-se também a
puta que os pariu a todos.”.
Cadernos de Lanzarote
Os Cadernos de Lanzarote são a reunião dos diários de José Saramago escritos no período de 1993 a 1995 na ilha de Lanzarote, arquipélago das Canárias onde ele viveu com sua mulher Pilar.
A melhor definição de diário é do próprio Saramago neste livro:
“Por muito que se diga, um diário não é um confessionário, um
diário não passa de um modo incipiente de fazer ficção. Talvez pudesse
chegar mesmo a ser um romance se a função da sua única personagem não
fosse a de encobrir a pessoa do autor, servir-lhe de disfarce, de
parapeito. Tanto no que declara como no que reserva, só aparentemente é
que ela coincide com ele. De um diário se pode dizer que a parte protege
o todo, o simples oculta o complexo. O rosto mostrado pergunta
dissimuladamente: Sabeis quem sou?, e não só não espera resposta, como
não está a pensar em dá-la.”
Fonte: Pragmatismo Politico
Nenhum comentário:
Postar um comentário