Seria a presidenta argentina uma real ameaça à “mídia independente”, como afirma o jornal paulista?
Vejo, na Folha, um ataque a Cristina Kirchner, presidenta da
Argentina. Ela estaria, mais uma vez, ameaçando a “mídia independente”.
Bem, vamos deixar claro. Ninguém é a favor de ameaças à “mídia
independente”, assim como ninguém é a favor da miséria e do câncer.
Mas de que independência a Folha está falando? Do governo? Certo: é
importante. Vital. E, a rigor, a mais fácil: em democracias como a
brasileira, você pode demonstrar coragem, aspas, facilmente com
violentas críticas aos governantes.
E a outra independência, a que o leitor não vê? Reportagens da Folha
que tenham algum tipo de delicadeza financeira – que envolvam, por
exemplo, um credor da empresa – estão longe de serem independentes.
Dentro da Folha, elas são chamadas de “Operação Portugal”. Quem me
contou foi o jornalista Nelson Blecher, que editou o caderno de Negócios
da Folha. Quando havia reportagens complicadas, Nelson era um dos
convocados para fazer as sempre bem-comportadas Operações Portugal.
Nelas, o rabo da Folha estava devidamente preso, mas fora da vista do
leitor.
Há anos aprendi que a verdadeira independência editorial de uma
publicação em regimes democráticos, a real prova de bravura e destemor,
está não nas páginas de política – mas nos cadernos de economia.
Repare a diferença no tom. Os artigos políticos são quase sempre
contundentes. Rugem. As colunas de negócios são invariavelmente cor de
rosa. Miam. Todas pertencem à mesma categoria da Operação Portugal.
O que motivou a ira da Folha foi uma cláusula que o governo argentino pretende colocar numa nova lei para regular a mídia.
Só para registrar: na Inglaterra está em marcha uma nova legislação
para a mídia. O escândalo do tabloide News of the World, de Rupert
Murdoch, precipitou um debate sobre quais são os limites da mídia. O NoW
invadia caixas postais de milhares de pessoas para obter furos e, com
isso, vender mais.
Pode? Não. O que se viu na Inglaterra é que a auto-regulação da mídia
simplesmente não funcionou. Interesses econômicos – vender mais, ter
relevância a qualquer preço – podem se sobrepor aos interesses públicos.
Empresas jornalísticas são negócios com fins lucrativos, e não
instituições filantrópicas. Provavelmente o resultado será a formação de
um órgão independente para fiscalizar a mídia britânica. Sem vínculo
com o Estado, para evitar controle — mas atenção: igualmente sem vínculo
com as próprias empresas, para evitar que em nome do interesse público,
aspas, elas façam os horrores que vinham fazendo.
Ninguém, na Inglaterra, ousou dizer que o que estava em curso era uma
tentativa de “calar a mídia independente”. A mídia está subordinada à
sociedade, e não acima dela. Não poucos notaram, na Inglaterra, o baixo
nível de muitas publicações – que deseducam em vez de educar, com uma
massa sinistra de fofocas de celebridades e fotos de beldades seminuas.
No Brasil, a mídia não paga imposto no papel em que publica revistas
de fofocas como Caras, Contigo e Quem, que fazem seus leitores crer que o
importante é saber que ator de novela está saindo com que atriz.
É o chamado “papel imune”, isento de imposto pelo caráter
supostamente educativo da publicação. Faz sentido? Talvez para jornais e
revistas sérios. Mas para tudo?
O objeto específico do ataque da Folha a Cristina Kirchner é um
trecho da nova legislação em que é afirmada a “questão de consciência”. É
mais ou menos o seguinte: imagine que um jornalista receba uma ordem
para escrever uma coisa que lhe cause repugnância. Ele poderia se
recusar.
Em situações normais, a “questão de consciência” seria supérflua. Os
jornalistas poderiam trabalhar em jornais e revistas com os quais se
sintam identificados. Na Inglaterra, um jornalista de esquerda vai
trabalhar no Guardian. Um conservador, no Times de Murdoch.
Mas e quando você tem uma brutal concentração de mídia como na
Argentina? O grupo Clarín, fora o jornal do qual extraiu o nome, é dono
de 240 emissoras de tv a cabo, 10 estações de rádio e quatro canais de
televisão.
Tenho uma história pessoal a contar, neste campo. Por coincidência, ela ocorreu na própria Folha.
Em meados dos anos 1960, meu pai era editorialista da Folha. O Brasil
vivia uma ditadura militar. Presos políticos iniciaram uma greve de
fome em São Paulo.
O dono da Folha, Octavio Frias de Oliveira, mandou que meu pai
escrevesse um editorial no qual fosse dito que não havia presos
políticos. Todos eram presos comuns. Meu pai recusou. O editorial saiu,
escrito por um grande jornalista que a cada dia passava por meu pai e
dizia, aflito: “Emir, já são x dias. Minha mulher tem muitos amigos entre os grevistas.” Meu pai foi colocado na geladeira imediatamente por Frias.
Jornalista, para servir ao interesse público, tem que ser mais que
uma máquina de escrever o que o dono pensa. Não é o que julgava o
jornalista Evandro Carlos de Andrade, que ganhou de Roberto Marinho o
posto de editor do Globo com uma infame declaração de que era “papista”,
um servo do Papa Roberto Marinho, mas é o que motiva qualquer
profissional que veja mais que cifrões pela frente.
Definitivamente, o ponto levantado por Cristina Kircher, o da
“questão de consciência”, é mais complexo do que a Folha gostaria que
fosse.
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