(JB) - A visita de Estado que a Presidente da República
faz à Espanha, coincidindo com a Reunião Ibero Americana de Cádiz, reclama
algumas reflexões. A primeira delas leva à necessária cautela diante da
lisonja.
É natural que os povos, como os indivíduos, sintam-se felizes, quando
lisonjeados. Os indivíduos sábios, como os povos sábios, aceitam o respeito dos
outros, mas desconfiam da lisonja. É como devemos nos comportar com os elogios
do governo, das elites econômicas e de parte da imprensa espanhola, nestas
horas.
De início, entendamos que a
crise mundial, que afeta particularmente os países meridionais da Europa,
é mais do que uma questão econômica. Ela está no núcleo da razão ocidental, e
na incapacidade de as estruturas políticas conduzirem o processo do conhecimento
científico, que introduziu novos módulos de convívio entre as pessoas e os
povos, principalmente mediante os meios instantâneos de comunicação. O problema
crucial do homem continua sendo o da desigualdade no usufruto da vida, e a
ciência e a tecnologia, longe de resolvê-lo, o têm agravado.
O bom momento por que estamos passando, no Brasil, pensando bem, não é tão bom assim, nem garantido: os horizontes do mundo são movediços, movediças as placas tectônicas, movediça a crosta flamejante do sol – que nos manda seus recados de perigo com as freqüentes e intensas erupções – e, mais movediça ainda, a alma dos homens.
Essa constatação nos inibe o exercício da soberba, ao mesmo tempo em que
convoca a razão humanística da solidariedade. Há, no entanto, que se preservar
a auto-estima.
Aos que nos lisonjeiam, pensando que nos engambelam, devemos
deixar claro que não somos parvos, e entendemos bem os seus interesses, da
mesma forma que preservamos os nossos.
É assim que vemos a presença da Presidente Dilma Rousseff em Cádiz – que salvou, in extremis, o encontro, segundo a publicação El Confidencial de Madri. Mas é necessário deixar claro que ali não fomos em busca de nada, porque a Espanha nada nos pode oferecer, neste momento, senão suas mãos vazias, em busca de algum apoio, quando as suas ruas se enchem de desempregados e de famílias despejadas pela voracidade dos bancos credores. Feito esse reparo, voltamos à necessidade de que nos comportemos, nesta quadra, sem descabidos orgulhos, mas tampouco sem sinais de que nos curvamos a uma superioridade que os espanhóis insistem em proclamar. Somos solidários, sim, com o povo ibérico, mas nada nos obriga a ser solidários com o Santander, a Telefónica, a Iberdrola, que nos exploram, nem com uma monarquia que começa a divertir, com seus escândalos e gafes, o jet-set internacional.
A imprensa espanhola – a partir de El Pais,
que se encontra em duras dificuldades financeiras – procura dar a versão de que
fomos a Madri em busca de investimentos. A verdade, no entanto, é que a Espanha
nunca teve dinheiro para investir no Brasil, nem mesmo os 90 bilhões de dólares
que apregoa, porque todo o dinheiro que eventualmente trouxe, tomou emprestado
de terceiros, e faz parte dos 3 trilhões de euros que o país e suas empresas
estão devendo, e que seu povo terá que pagar a partir de agora.
A pretensa competência espanhola na condução
de sua economia, ou de seus líderes empresariais na direção de seus negócios, é
um mito que a realidade está demolindo. O país só conseguiu sair do
atraso e do obscurantismo a que esteve relegado durante a maior parte do século
XX, sob a peste do franquismo, porque recebeu bilhões de euros de
recursos da União Européia, a fundo perdido, e fez empréstimos ainda maiores,
aproveitando os juros historicamente baixos, durante os primeiros anos do euro.
Uma fortuna imensa, muito acima da capacidade de produção do país, ou da renda
real de sua população, que a Espanha não soube utilizar para forjar
economia competitiva e sólida, mediante o desenvolvimento industrial
interno e autônomo.
Investiu-se muito em obras de
infraestrutura, muitas delas, hoje sub-utilizadas; os bancos usaram os
recursos fartos na especulação imobiliária. E se aplicou, mais do que seria
conveniente, no setor de serviços, como no mercado financeiro e nas
telecomunicações. Aqui, no Brasil, há quem pense que a Telefónica é uma empresa
de classe mundial, quando o grupo deve mais de 100 bilhões de dólares,
dívida impagável, principalmente se considerarmos a situação de
crise que espera a Europa e os Estados Unidos nos próximos anos.
Da mesma forma, muita gente acredita
que o Santander do Sr. Emilio Botin é uma potência, quando na verdade
teve uma queda de 60% do lucro na matriz este ano, e perdeu quase 50% do
seu valor de mercado no Brasil, desde 2009. Mal administradas, com o valor e o
lucro em queda, que futuro as empresas espanholas esperam na América Latina? A
nacionalização por capitais locais, com ou sem ajuda do governo, ou a
transferência de seus ativos e contratos para empresas chinesas, que contam com
real capacidade para investir, com o apoio do país que detêm as maiores
reservas internacionais e é o maior credor dos Estados Unidos no mundo.
Esse foi o caso, por exemplo, da Repsol
espanhola, que passou a metade do seu negócio no Brasil para a Sinopec,
chinesa.
Mas, em vez de deixar que as coisas se desenrolem normalmente, o
Governo Federal vem financiando, direta e indiretamente as multinacionais
espanholas no Brasil, enquanto elas continuam a enviar bilhões de
dólares em remessa de lucros para as suas matrizes todos os anos.
Em setembro de 2011, o Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais eximiu o Santander de pagar cerca de 4
bilhões de reais em impostos. No mesmo ano, a Vivo, leia-se Telefónica,
que tem
entre seus “conselheiros”, o genro do rei da Espanha - um ex-jogador de
handebol, agora processado por corrupção em seu país - obteve, de uma só
vez, 3
bilhões de reais em empréstimos do BNDES para “expansão de
infraestrutura”. O BNDES tem financiado a instalação e expansão de
empresas espanholas em outras áreas, como as de transmissão de energia e
geração eólica, quando deveria, no mínimo, fazer o mesmo, para assegurar
com a mesma generosidade a criação e a presença de empresas 100%
brasileiras nessas áreas.
Outro mito que se propagou no Brasil, durante
a tragédia neoliberal dos anos 90, é o da excelência técnica da
engenharia
espanhola, e dos técnicos espanhóis de modo geral. A imprensa espanhola
não se
cansa de dizer que precisamos de suas construtoras para reformar
estádios de
futebol e as instalações para as Olimpíadas, e para a construção de
estradas. É
risível. Como se não tivéssemos nós, brasileiros, construído Brasília, a
cidade
que surpreendeu o mundo por seu projeto urbanístico e arquitetônico;
pontes
como a Rio-Niterói, estradas como a Transmauritaniana, em pleno Saara,
aproveitando conchas encontradas na areia para fazer cimento, ou Itaipu,
a
maior hidrelétrica do mundo, com uso de uma linha de resfriamento
contínuo de
concreto, quando a Espanha, ainda na agonia do franquismo, nem mesmo
sequer
dispunha de uma rodovia duplicada. Na construção de navios também não
nos é dado o direito de ter memória curta. Não custa nada lembrar que a
nossa indústria naval era a primeira do mundo nos anos 70. O mesmo erro
se comete com relação às universidades.
A possibilidade de, talvez, a média das universidades espanholas ser de
boa
qualidade, e de estarmos enviando estudantes para lá, pelo Programa
Ciência sem Fronteiras, não nega o fato de, no
ranking das melhores universidades do mundo, a USP estar à frente de
qualquer
universidade ibérica (segundo a The Times Higher Education World
University
Rankings, 2012/2013).
Ora, se a Espanha não tem capitais
próprios para investir no Brasil, nem excelência em engenharia de grandes
obras, qual a vantagem de continuar estreitando os laços com as elites
espanholas e os seus representantes?
A Presidente salvou a cúpula de Cádiz do
malogro, mas o Brasil, como nação e seus interesses com relação à interação continental, foi golpeado,
com uma conferência, dentro do evento, patrocinada pela Espanha, da
Aliança do Pacífico, organização fomentada
pelo México com a intenção de “rachar” diplomaticamente a América do Sul,
e que reúne a Colômbia, o Chile e o Peru, na tentativa de contrapor-se ao
Mercosul, à UNASUL e ao Conselho de Defesa Sul-americano. Aproveitando a
presença de Dilma, a imprensa espanhola voltou a anunciar, como faz
regularmente, que o Brasil estaria mudando a legislação para permitir a entrada
de trabalhadores espanhóis em nosso país.
Em respeito aos 11.000 brasileiros
expulsos da Espanha nos últimos anos, seria conveniente que nenhuma
medida nesse sentido fosse tomada sem o critério de reciprocidade, de
forma que se os cidadãos brasileiros quisessem – embora, nesse momento, seja
improvável – pudessem usar do mesmo direito, o de entrar na Espanha e ali
trabalhar, em iguais condições.
Uma última observação: o governo espanhol anunciou ontem que
pretende dar visto de residência automática aos nacionais de certos paises que
ali adquirirem moradias (da qual estão sendo despejadas as famílias espanholas)
pelo valor mínimo de 400.000 reais. A medida não favorece os espanhóis, mas,
sim, reduz o buraco em que se meteram os bancos. Ora, como um país que se
encontra nesta situação, pode se apresentar - sem dinheiro do BNDES - como “investidor” nas grandes obras
brasileiras?
Ao aceitar tais “investimentos” o Brasil poderá
estar salvando as elites empresariais claudicantes da Espanha, mas não estará
ajudando seu povo, nem o nosso. E há mais, quando perguntaram quem
seriam os compradores dos imóveis, o funcionário responsável pela declaração citou russos e chineses,
pertencentes ao BRICS. O Brasil é parte dos BRICS. Ao que parece, os
brasileiros, mesmo com dinheiro, continuam sendo indesejáveis ali.
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