“São Francisco em Meditação”, pintura aparece em duas versões na exposição “Caravaggio e Seus Seguidores”
Por Mariana Shirai | Para o Valor, de São Paulo
Duas telas quase idênticas integram o conjunto de 22 obras da mostra
“Caravaggio e Seus Seguidores”, que será aberta amanhã no Museu de Arte
de São Paulo (Masp). As duas versões de “São Francisco em Meditação”
foram recentemente restauradas pela pesquisadora italiana Rossella
Vodret, especialista na obra e idealizadora da exposição brasileira. Uma
das telas, datada de 1606, é a obra original de Caravaggio; a segunda,
realizada de 1606 a 1618, era considerada uma cópia feita pelo próprio
artista. Mas em 2010 Rossella formulou a tese de que a cópia não havia
sido executada por ele.
A descoberta da pesquisadora não obteve aceitação unânime. O próprio
material de divulgação da mostra se refere aos dois “São Francisco em
Meditação” como obras de Caravaggio, ignorando a hipótese de Rossella.
De acordo com Arnaldo Spindel, diretor da Base7, produtora da mostra,
a questão da comprovação ainda não está definida. “A apresentação dos
dois ‘São Francisco em Meditação’ e de uma sala dedicada à explicação
mais detalhada do processo de análise e autenticação de obras de
Caravaggio se inserem na perspectiva da curadoria de colocar como um dos
pontos centrais dessa exposição as questões relacionadas às atribuições
e confirmações.”
Quando se trata da obra de Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610), divergências em relação a autoria são frequentes.
O gênio do “chiaroscuro” é atualmente um dos objetos preferidos de
pesquisas que revolvem a história da arte para reescrevê-la ou
alimentá-la com novos detalhes. Os resultados anulam ou asseguram a
autoria de peças, descobertas de obras até então desconhecidas de
grandes artistas e até exumações de corpos, como ocorreu no mês passado
em Florença, quando um grupo de pesquisadores afirmou ter encontrado a
ossada da modelo de “Mona Lisa”, quadro de Leonardo da Vinci.
Esse mesmo grupo de arqueólogos encontrou há alguns anos o que seriam
os restos mortais de Caravaggio, que foram desenterrados e exibidos ao
público em 2010, ano que marcou os 400 anos da morte do artista. Para o
historiador de arte Luiz Marques, essas buscam sugerem um processo de
“beatificação” dos grandes artistas, como se a procura fosse por
relíquias de santos.
Dali em diante, sua obra seria alvo de diversas descobertas, quase sempre polêmicas.
A mais recente delas, divulgada no início deste mês, diz respeito a
um conjunto de cem desenhos do artista, que poderiam valer US$ 700
milhões caso a autoria não suscitasse tanta desconfiança – muito já foi
escrito sobre o fato de que Caravaggio não desenhava.
A exposição no Masp traz textos e painéis informativos que, a partir
das obras reunidas, aprofundam essas questões. “Por isso, essa é uma
mostra que discute não só a obra do mestre italiano, mas também a
história da arte”, afirma Fábio Magalhães, curador brasileiro da
exposição.
“Medusa Murtola”: assim como a tela “Retrato do Cardeal”, obra é exposta pela primeira vez fora da Itália
As inovações tecnológicas têm papel importante para a proliferação de
pesquisas no campo da arte. “Até há pouco tempo, essas análises eram
todas feitas ‘no olho’. Vinha um especialista e, apenas a partir de seu
conhecimento e da observação da obra, ditava se ela era ou não
autêntica”, afirma Magalhães. “Hoje em dia, as análises vão muito além.
Há raios infravermelhos que atravessam o pigmento e revelam o processo
da pintura e ampliações de 200 vezes para analisar uma pincelada, entre
muitas outras estratégias.”
Não fossem esses novos recursos, a obra “Medusa Murtola”
provavelmente não estaria nessa mostra. Assim como “Retrato do Cardeal”,
a peça sai da Itália pela primeira vez. As obras chegam a São Paulo
pouco depois da conclusão de uma pesquisa que durou 20 anos e
desmistificou uma crença de quatro séculos.
Acreditava-se que “Medusa Murtola” era uma cópia feita por um
“caravaggesco” (nome dado aos artistas que seguiam o estilo do mestre
italiano) de uma das obras mais conhecidas do artista, a “Cabeça de
Medusa”. O estudo revelou que o próprio Caravaggio concebeu a “Medusa
Murtola” e só depois fez a obra que era considerada “a original”.
A degola, aliás, é um tema recorrente na obra do mestre italiano, que
precisou fugir de Roma depois de ser condenado à decapitação pelo
assassinato de Ranuccio Tomassoni. Caravaggio chegou a obter o perdão
pelo crime, mas adoeceu e morreu antes de conseguir retornar para Roma. A
violência e a morte estão entre os principais temas retratados pelo
artista.
Além de “Medusa Murtola” e “São Francisco em Meditação”, a mostra na
capital paulista apresenta outras quatro obras de Caravaggio, incluindo
“São Jerônimo Que Escreve” e “São João Batista Que Alimenta o Cordeiro”.
Esta última entrou nos últimos três dias da exposição em Belo
Horizonte, primeira parada das obras no Brasil. Quase 90 mil pessoas
visitaram a mostra, que, depois de São Paulo, vai para Buenos Aires.
Também será incluída agora na exposição uma cópia de autor
desconhecido da tela “Os Trapaceiros”, de Caravaggio. Completam o
conjunto no Masp outras 15 obras de artistas contemporâneos do gênio
italiano e influenciados por ele, como Artemisia Gentileschi, Bartolomeo
Cavarozzi, Giovanni Baglione e Hendrick van Somer.
São conhecidas apenas cerca de 60 obras de Caravaggio. Muitas são
painéis em igrejas e outras nunca saem dos acervos das instituições que
as detêm. As que estão no país provêm de coleções particulares e de três
prestigiados museus italianos: a Galleria Borghese e o Palazzo
Barberini, em Roma, e a Galleria degli Uffizi, em Florença.
Foi o italiano quem primeiro recusou a tradição renascentista da
perspectiva. “Caravaggio revolucionou a arte com uma nova concepção de
espaço. Em suas telas, é como se a luz esculpisse os corpos”, diz o
historiador de arte Luiz Marques. E não há polêmica ou pesquisa que mude
o impacto de se pôr diante de suas telas.
“Caravaggio e Seus Seguidores”
Masp (av. Paulista, 1.578, São Paulo), tel.: (0xx11) 3251-5644. De terça a domingo, das 11 h às 18 h; quinta, das 11 h às 20 h, R$ 15
Postado por Luis Favre
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