Agora que o “maior julgamento da história” já começou de verdade,
crescem as preocupações com o decoro. Parece que os 11 ministros do
Supremo merecem uma advertência para exibir bom comportamento, não
manchar sua imagem e outros cuidados do gênero.
O ambiente está tão
confuso que, como recordam Mariângela Galucci e Ricardo Brito, no Estado
de S. Paulo de hoje, os ministros voltam aos trabalhos sem ao menos
saber o que vão fazer. Pode ser que o relator Joaquim Barbosa resolva
continuar seu voto, interrompido na quinta-feira. Mas pode ser que
Joaquim já tenha terminado essa parte de sua intervenção, cabendo agora
ao revisor Ricardo Lewandovski fazer uso da palavra.
Há uma tensão evidente no Supremo e sua causa não se encontra na falta
de boas maneiras dos ministros mas na diferença de visão entre as
partes. O grau de conflito entre Barbosa e Lewandovski é bem maior do
que um problema de etiqueta. Envolve a visão que cada um tem do
processo, a qualidade da denúncia apresentada e o destino reservado aos
38 réus.
A primeira fase do julgamento, quando os advogados fizeram a sustentação
oral dos acusados, terminou com um ponto a favor da defesa. Ficou muito
claro para quem acompanhou suas intervenções que boa parte das provas
foram obtidas sem que os acusados tivessem direito ao contraditório e
devida garantia judicial. Isso vai comover os juízes? Ninguém sabe. A
convicção de muitos advogados é que eles começaram o julgamento com sua
convicção formada e dificilmente vão mudar de ideia.
A novidade da nova fase é o fatiamento, que privilegia a discussão de
37 casos particulares e prejudica o debate geral sobre o caráter do
mensalão.
O pressuposto do sistema de fatiamento é que a denuncia do Ministério
Público se refere a fatos verdadeiros, já demonstrados, restando,
apenas, a definição da culpa de cada um dos envolvidos.
Como escrevi numa nota anterior, por este método não haverá espaço para
uma discussão geral, que envolve o conceito de mensalão: foi um assalto
ao Estado, uma ação criminosa, a obra de uma quadrilha disfarçada de
partido político, como diz a acusação? Ou foi uma ação condenável de
financiamento eleitoral e político, que tem antecedentes no próprio
mensalão tucano, que teve direito a outro julgamento, com regras menos
duras para os réus acusados dos mesmos crimes?
O estranho do fatiamento é que essa discussão tenha sido feita assim, de
repente. O julgamento já estava em andamento quando Joaquim Barbosa, na
hora de dar seu voto, abrindo a fase final, informa que queria mudar as
regras do jogo. Numa homenagem a retórica do presidente Lula, eu digo:
Barbosa parecia o sujeito que vai cobrar uma falta na entrada da área
e, na hora de dar o chute, quer impedir o goleiro adversário de montar
uma barreira.
Eu achei estranho. Fora de hora. Não podia ter feito essa discussão antes?
Confesso que também estranhei a atitude do juiz do jogo, Ayres Britto,
que deu curso a uma discussão tão relevante, sem sequer pedir um
intervalo para uma conversa fechada.
Não foi uma mudança qualquer. Não sei se há uma jurisprudência do
fatiamento. Não foi empregado, pelo que se saiba, nem no julgamento de
Collor, que definiu o destino de um presidente da República.
Julgamentos que a imprensa não definiu como o “maior da história” mas
terão imensa relevância no destino dos 190 milhões de brasileiros foram
resolvidos pela forma tradicional. O relator apresentava seu voto por
inteiro e o plenário tomava posição. Quando havia uma dissidência o
debate se polarizava.
Foi assim no debate sobre a Lei de Anistia, que manteve a veto sobre a
investigação da tortura ocorrida no regime militar. Também foi assim na
discussão sobre reservas indígenas e nas pesquisas sobre células-tronco
embrionárias. Por que mudar agora, quando o julgamento do mensalão já
tinha começado vários dias antes?
O mais estranho é que um argumento importante a favor do fatiamento é
extra-curricular. Envolve o prazo para terminar o julgamento. Um dos
motivos parece pequeno, vulgar, mas é real. Pretende-se garantir ao
ministro Cezar Peluso, que se aposenta em 3 de setembro, o direito de
participar pelo menos de algumas deliberações (e condenações, asseguram
os jornais).
Se tudo se resolvesse pelo método tradicional, havia o risco do
julgamento não terminar a tempo. Então, faz-se um esforço para andar
rápido. É um esforço tão grande que, na quinta-feira, o próprio Joaquim
Barbosa lembrou que, em função de seus problemas de coluna, ele próprio
poderia ser forçado a deixar o serviço de relator antes da hora, se o
julgamento se prolongasse demais.
É curioso que isso seja dito assim, às claras, com toda transparência.
Na quinta-feira, o ministro Ayres Brito chegou a sugerir que cada um
votasse como bem entendesse – solução tão inviável como admitir que uma
parte do plenário seguisse regras do futebol e a outra, basquete, e,
mesmo assim, acreditar que seria possível chegar a um placar coerente
no final. “Não me preocupa a angústia do tempo,” reagiu Celso de Mello,
quando Ayres Britto sugeriu que se apressasse numa intervenção em meio
as discussões.
A reação de Celso de Mello lembra que a aposentadoria de um ministro e
as dores lombares de outro pouco tem a ver com a Justiça. Por mais que
se reconheça que a sentença do mensalão terá impacto nas eleições
municipais, e que uma possível condenação da maioria dos réus possa
prejudicar o PT, eu acho que essa questão nem deveria ser colocada.
Estamos falando de longas penas de prisão, da humilhação pública, da
destruição do futuro pessoal e profissional, além dos demais prejuízos
que uma condenação pode causar aos réus. Seja do ponto de vista da
acusação, ou da defesa, é uma situação grave, séria e, considerando que
se trata de um tribunal de última instância, muito possivelmente
incorrigível. Vamos fazer assim, apressados?
É este o processo que se queria exemplar?
Não é bom esclarecer o principal: exemplo de que?
Nenhum comentário:
Postar um comentário