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domingo, 12 de agosto de 2012

ÍDOLOS DE BARRO, HERÓIS DE FARELO


Cevadas no pasto da ditadura, empresas e personalidades posam hoje de democratas e benfeitoras do país, desdenhando da memória popular
General ditador Jorge Videla

Por Luiz Ricardo Leitão
A Justiça da Argentina condenou a 50 anos de prisão o General Jorge Videla, acusado não só pela morte e desaparecimento de centenas de militantes da resistência à ditadura, como também pelo sequestro e ocultação de inúmeros bebês filhos desses combatentes. A sentença exemplar assinala o fim do longo processo deflagrado por uma denúncia das Avós da Praça de Mayo e representa uma enorme vitória do movimento social argentino, cuja intensa mobilização e organização tem sido decisiva para reescrever a história de sua pátria desde a queda do regime militar em 1983.
Cá nesta nossa Bruzundanga, no entanto, continuamos a padecer as sequelas de uma história truncada e obscura, repleta de ídolos de barro e heróis de farelo. Basta lembrar a “Independência”, proclamada sobre o lombo de um cavalo por um príncipe português em meio às intrigas da sua Corte, ou então a tosca “República”, decretada sem nenhum tiro na agonia do Império – cujo final, aliás, Caio Prado Jr. descreveu com rara ironia: “uma simples passeata militar bastou para lhe arrancar o último suspiro...”
Durante séculos, prevaleceu nas escolas e na imprensa essa história oficial, capaz de exaltar os feitos ‘gloriosos’ de D. Pedro I ou dos marechais da I República, ignorando sistematicamente as lutas de Zumbi dos Palmares, a resistência de Canudos e do Contestado – e estigmatizando sem dó os lutadores do povo, como tão bem o sabem nossos companheiros do MST, tachados de atrasados ou criminosos pelos coronéis da mídia contemporânea. Mas essas vozes dissonantes continuam a desafiar o “coro dos contentes” que se lambuza nas tetas do Estado – e já não há como abafar as maracutaias do estranho consórcio que reúne monopólios, banqueiros, o agronegócio, a grande mídia e os emergentes desta era dita pós-moderna, em que se incluem Eike Batista, Daniel Dantas e outros arrivistas de igual jaez.
Sua prepotência é apenas fachada, pois, como nos ensinou o velho Marx, se tudo que é sólido se desmancha no ar, imaginem o destino de tais patrimônios erguidos sobre mentiras e riquezas virtuais. Um símbolo de tamanha farsa é o senador Demóstenes Torres: autoproclamado “arauto da moralidade”, o democrata (!) foi cassado por suas relações mui perigosa$ com o bicheiro Carlinhos Cachoeira. Outro cuja desfaçatez veio abaixo é João Havelange, ex-presidente da Fifa, entidade pródiga em escândalos de suborno & corrupção: a Justiça suíça acaba de confirmar que esse “herói do esporte” recebeu R$ 3,1 milhões da ISL para beneficiar a empresa nos contratos de TV das Copas de 1998 e 2002.
Há muita carne debaixo desse angu, meu caro leitor. Além de Havelange, seu pupilo Ricardo Teixeira (ex-presidente da CBF, hoje ‘exilado’ em Miami) também abocanhou uma nota: R$ 26,4 milhões! Já imaginaram o dinheiro que outros mafiosos têm faturado com suas ‘ações’ em prol do desporto local e mundial? E as poderosas redes de TV, como a Globo, que geniais ‘jogadas’ terão promovido em seus contratos com a Fifa e a CBF? (Isso sem falar no COI e no COB, cujos negócios têm sido geridos por figuras como Juan Antonio Saramanch e Carlos Arthur Nuzman, gente mui proba e desprendida...).
Cevadas no pasto da ditadura, essas empresas e personalidades posam hoje de democratas e benfeitoras do país, desdenhando da memória popular. E quando algum de seus próceres cai em desgraça (caso de Havelange e Teixeira) ou vem a falecer (como ocorreu com dom Eugênio Salles), sua trajetória ou obituário atinge tons inusitados de heroísmo e grandeza. Nas páginas da Veja e da Época, ou nos telejornais da Globo e da Band, o cardeal foi descrito como um mártir da luta contra a ditadura, que abrigou “milhares” (?) de perseguidos pelo regime militar... Bem, na vida real, fora da tela, a história é bem diferente.
O mundo, porém, dá muitas voltas... Aqui no Rio, aliás, corre um abaixo-assinado para rebatizar o Engenhão, substituindo o João de farelo pelo saudoso João Sem Medo (isto é: em vez de João Havelange, o estádio cedido ao Botafogo ganharia o nome de João Saldanha). Mesmo simbólico, não seria um gol de letra?
Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor associado da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e de Lima Barreto – o rebelde imprescindível.


FONTE: Brasil de Fato

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