Cevadas no pasto da ditadura, empresas e personalidades posam hoje de
democratas e benfeitoras do país, desdenhando da memória popular
General ditador Jorge Videla |
Por Luiz Ricardo Leitão
A Justiça da Argentina condenou a 50 anos de prisão o General Jorge
Videla, acusado não só pela morte e desaparecimento de centenas de
militantes da resistência à ditadura, como também pelo sequestro e
ocultação de inúmeros bebês filhos desses combatentes. A sentença
exemplar assinala o fim do longo processo deflagrado por uma denúncia
das Avós da Praça de Mayo e representa uma enorme vitória do movimento
social argentino, cuja intensa mobilização e organização tem sido
decisiva para reescrever a história de sua pátria desde a queda do
regime militar em 1983.
Cá nesta nossa Bruzundanga, no entanto, continuamos a padecer as
sequelas de uma história truncada e obscura, repleta de ídolos de barro e
heróis de farelo. Basta lembrar a “Independência”, proclamada sobre o
lombo de um cavalo por um príncipe português em meio às intrigas da sua
Corte, ou então a tosca “República”, decretada sem nenhum tiro na agonia
do Império – cujo final, aliás, Caio Prado Jr. descreveu com rara
ironia: “uma simples passeata militar bastou para lhe arrancar o último
suspiro...”
Durante séculos, prevaleceu nas escolas e na imprensa essa história
oficial, capaz de exaltar os feitos ‘gloriosos’ de D. Pedro I ou dos
marechais da I República, ignorando sistematicamente as lutas de Zumbi
dos Palmares, a resistência de Canudos e do Contestado – e
estigmatizando sem dó os lutadores do povo, como tão bem o sabem nossos
companheiros do MST, tachados de atrasados ou criminosos pelos coronéis
da mídia contemporânea. Mas essas vozes dissonantes continuam a desafiar
o “coro dos contentes” que se lambuza nas tetas do Estado – e já não há
como abafar as maracutaias do estranho consórcio que reúne monopólios,
banqueiros, o agronegócio, a grande mídia e os emergentes desta era dita
pós-moderna, em que se incluem Eike Batista, Daniel Dantas e outros
arrivistas de igual jaez.
Sua prepotência é apenas fachada, pois, como nos ensinou o velho Marx,
se tudo que é sólido se desmancha no ar, imaginem o destino de tais
patrimônios erguidos sobre mentiras e riquezas virtuais. Um símbolo de
tamanha farsa é o senador Demóstenes Torres: autoproclamado “arauto da
moralidade”, o democrata (!) foi cassado por suas relações mui perigosa$
com o bicheiro Carlinhos Cachoeira. Outro cuja desfaçatez veio abaixo é
João Havelange, ex-presidente da Fifa, entidade pródiga em escândalos
de suborno & corrupção: a Justiça suíça acaba de confirmar que esse
“herói do esporte” recebeu R$ 3,1 milhões da ISL para beneficiar a
empresa nos contratos de TV das Copas de 1998 e 2002.
Há muita carne debaixo desse angu, meu caro leitor. Além de Havelange,
seu pupilo Ricardo Teixeira (ex-presidente da CBF, hoje ‘exilado’ em
Miami) também abocanhou uma nota: R$ 26,4 milhões! Já imaginaram o
dinheiro que outros mafiosos têm faturado com suas ‘ações’ em prol do
desporto local e mundial? E as poderosas redes de TV, como a Globo, que
geniais ‘jogadas’ terão promovido em seus contratos com a Fifa e a CBF?
(Isso sem falar no COI e no COB, cujos negócios têm sido geridos por
figuras como Juan Antonio Saramanch e Carlos Arthur Nuzman, gente mui
proba e desprendida...).
Cevadas no pasto da ditadura, essas empresas e personalidades posam hoje
de democratas e benfeitoras do país, desdenhando da memória popular. E
quando algum de seus próceres cai em desgraça (caso de Havelange e
Teixeira) ou vem a falecer (como ocorreu com dom Eugênio Salles), sua
trajetória ou obituário atinge tons inusitados de heroísmo e grandeza.
Nas páginas da Veja e da Época, ou nos telejornais da Globo e da Band, o
cardeal foi descrito como um mártir da luta contra a ditadura, que
abrigou “milhares” (?) de perseguidos pelo regime militar... Bem, na
vida real, fora da tela, a história é bem diferente.
O mundo, porém, dá muitas voltas... Aqui no Rio, aliás, corre um
abaixo-assinado para rebatizar o Engenhão, substituindo o João de farelo
pelo saudoso João Sem Medo (isto é: em vez de João Havelange, o estádio
cedido ao Botafogo ganharia o nome de João Saldanha). Mesmo simbólico,
não seria um gol de letra?
FONTE: Brasil de Fato
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