A abdicação de Juan Carlos do trono, em favor de Felipe de Astúrias, faz lembrar, de pronto, a tentativa frustrada de golpe de 17 de fevereiro de l977, pelo coronel Enrique Tejero, da Guarda Civil.
Durante muito tempo, pairaram dúvidas sobre o papel do Rei
naquela noite, até hoje não de todo esclarecido. O certo é que os golpistas,
durante o episódio, falaram como se
obedecessem a suas ordens, e que seu nome foi proposto, por eles, para assumir
o poder, depois de passar pela eventual aprovação de um plenário cercado por
tropas, e sob a mira de um louco, com uma pistola automática na mão.
Com o tempo, passando por histórias de amantes e de caçadas
de elefantes, Juan Carlos I estabeleceu uma personalidade cheia de contrastes,
e de situações nebulosas.
Sempre teve estreitas relações com os grandes “magnatas”
espanhóis e seus negócios na América
Latina, em uma época em que a Espanha achava que podia promover arrogante
reconquista de seus antigos territórios, esquecendo-se, os espanhóis e seus
oligarcas, de que só estavam em situação aparentemente positiva graças a
bilhões de euros a fundo perdido da União Européia e a gigantescas dívidas que
terão de pagar agora.
A intimidade com o mundo dos negócios, e com gente que
enriqueceu rapidamente, na esteira da entrada da Espanha no euro, levaria a
família real – que já contava com generosa “renda” e todas as despesas pagas
pelo erário – a envolver-se em uma série de escândalos e negociatas.
O genro do Rei, Iñaki Urdangarin, um ex-jogador de handebol –
que ocupava cargos em conselhos de várias empresas espanholas, inclusive a
Telefónica América Latina, dona da “Vivo” no Brasil – foi acusado de desvio de
dinheiro público, por meio de uma organização fundada por ele, aparentemente
“sem fins lucrativos”, o Instituto Noos, que prestava – sem os executar –
serviços superfaturados para províncias e municípios espanhóis.
Mesmo posando de democrata, em momentos emblemáticos, Juan
Carlos não conseguiu esconder sua verdadeira face, profundamente conservadora e
neocolonial, quando disse o que queria – e ouviu o que não queria – ao
proferir, em reunião de uma das
fracassadas cúpulas “íbero-americanas”, para o Presidente Chavez, “porque no te
callas?”
Ao abdicar em favor de seu filho, Juan Carlos I abre mão do
reinado para salvar uma monarquia contestada.
Um sistema que é o retrato mais forte de uma Espanha
anacrônica e cada vez mais irrelevante, que se encontra dividida por polêmicas
intestinas dentro de suas próprias fronteiras.
O seu gesto, interesseiramente apresentado, pela mídia
conservadora espanhola, como o da renúncia de um nobre cavalheiro, cansado
depois de longa caminhada em defesa de seu
povo, pode ter o efeito de um tiro saindo pela culatra, e precipitar,
como se viu nas manifestações realizadas
em toda a Espanha, o fim da monarquia em seu país.
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